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Relações entre cultura escolar e culturas da infância.

20/04/2021

É preciso dar ouvidos à criança. Proponho a seguir uma breve reflexão sobre como podemos fazer uma gestão equilibrada da relação entre cultura escolar e culturas da infância.

Estes dois conceitos nos ajudam a compreender as razões de inúmeros conflitos dentro da escola. A cultura escolar pode ser aqui representada pelo conjunto das convenções, normatizações, currículos, diretrizes, hierarquias, rotinas e tradições docentes que alicerçam a estrutura das instituições escolares. As culturas da infância podem ser entendidas como um complexo de influências que norteiam as práticas sociais infantis como, por exemplo, as influências que vemos transbordar nas práticas lúdicas e que decorrem do tipo de imersão cultural na qual a criança se desenvolve, uma vez que o brincar é, de um modo ou de outro, reflexo da vida social.

A relação entre cultura escolar e culturas da infância é robusta. Os alunos despejam dentro da estrutura escolar padronizada uma quantidade incalculável de interesses distintos, fundados em suas particulares histórias de vida e impulsionados por conhecimentos que muitas vezes não têm origem escolar, nem tampouco integram o currículo de ensino. Tais interesses possuem comumente uma roupagem lúdica. Mas sua motivação central não é apenas a busca pela recreação ou pelo lazer. As crianças criam dinâmicas lúdicas, encenam papeis, desafiam-se nos jogos, testam suas capacidades em grupo e experimentam os seus limites pessoais porque isso as insere no meio social, define suas posições entre pares, ajuda a esculpir e afirmar suas identidades.

Gosto de definir a Escola como um conjunto de vias de acesso. Múltiplas vias interconectadas caracterizam essa fundamental instituição das sociedades modernas. Algumas vias dão acesso imediato ao conhecimento selecionado e organizado na forma de currículo, por meio das disciplinas escolares. Outras vias geram acesso a formas diferenciadas de produção e gestão do conhecimento. É que a Escola se estrutura não apenas conforme as diretrizes governamentais e os parâmetros prevalecentes, mas também pelo modo como sua comunidade se organiza. A Escola dá acesso também às distintas metodologias de ensino e de organização do trabalho, porque quem ensina algo, não ensina apenas o conteúdo, mas também a forma como o conteúdo está sendo ensinado.

Como via de acesso à convivência social diversificada, entre distintos grupos, identidades e culturas, a Escola é capaz de produzir questionamentos sobre o modo como a sociedade se organiza. Na Escola se encontram e se entrelaçam diferentes padrões de comportamento e expressões estéticas. Se a Escola reconhece e valoriza o pertencimento social e a cultura de seus alunos, ela pode contribuir significativamente com o desenvolvimento cultural de sua comunidade. Para que isso ocorra, é preciso que ela promova, ainda que modestamente, uma ampliação da experiência curricular capaz de contemplar aspectos da cultura e do conhecimento que tradicionalmente não compõem a sua grade programática. Esta estratégia resulta em um melhor aproveitamento pedagógico, inclusive no que se refere aos conteúdos curriculares.

Multiplicam-se pelo Brasil e pelo mundo experiências educacionais que demonstram esta ideia. Mais literatura, mais música, mais esporte, mais visita a museus, mais passeio pelo bairro, mais conexão com a cidade são exemplos de ações que podem resultar em maior rendimento pedagógico. É fabuloso promover a circulação dos grupos infantis no interior da escola estimulando a realização de atividades entre alunos de diferentes faixas etárias e níveis de escolarização. É instigante estimular o contato entre crianças de distintos pertencimentos sociais, como nos casos em que as escolas públicas recebem a visita de alunos de escolas particulares e vice-versa. É encantador ocupar com as crianças os espaços públicos nos arredores da escola, aguçando a percepção das crianças acerca da cidade em que vivem. É fabuloso frequentar teatros, exposições e promover o contato dos grupos infantis com personalidades locais, moradores antigos, figuras emblemáticas da região. Ampliar a experiência curricular por meio de projetos temáticos pontuais e incluir nas didáticas de ensino elementos expressivos que têm origem nas culturas infantis, nas culturas locais e nas culturas de massa não significa uma afronta ao currículo tradicional. Pelo contrário, acolher as influências sociais trazidas pelos alunos e processar pedagogicamente os seus ingredientes culturais pode gerar excelentes resultados educacionais.

Um deles reside no fato de que o acolhimento gera identificação, e identificação gera pertencimento. Se os alunos que gostam de break encontram espaço para se expressar no pátio, ou até na sala de aula, a escola ganha mais sentido para eles. Se as alunas que gostam de coreografar os seus passos no recreio são convidadas a dançar nos eventos da escola, a escola passa a ser cada vez mais convidativa. Se as crianças que se dedicam ao “Bater Cartinha” são orientadas a se responsabilizar por determinadas regras de utilização deste material, ao invés de serem apenas proibidas de brincar, então esta atividade polêmica que tanto incômodo gera aos profissionais da escola pode se tornar uma oportunidade de exercitar a socialização, o respeito e a partilha.

Trata-se, portanto, de uma perspectiva capaz de tratar os saberes produzidos pelas crianças como conteúdos significativos. As culturas da infância encontram no espaço escolar um terreno fértil, de onde brotam diariamente jogos e brincadeiras, trejeitos corporais, gírias, manias, lendas e um complexo campo de representações sociais que irrigam o imaginário infantil e que dão substância à criatividade dos alunos. Este rico substrato cultural é elementar e fundamental. Nele, o conhecimento escolar encontrará conexões e poderá ser mais facilmente internalizado. 

Mas é preciso reconhecer que a Escola sempre terá restrições aos saberes de origem popular e às culturas de massa. Como nos lembra o sociólogo Jean-Claude Forquin, a Escola não é oposta à novidade, mas ela não pode ceder ao efêmero e aos modismos. E as culturas da infância, apesar de serem repletas de elementos arcaicos e tradicionais, incluem conteúdos massificados, que têm origem em programas televisivos, personagens de animação, jogos eletrônicos, brinquedos industrializados. É impressionante o êxito que estes produtos alcançam ao estabelecer diálogos prolongados com o público infantil, a ponto de invadirem o cotidiano escolar e comprometerem atividades de rotina. Um herói de desenho animado pode passar anos inspirando brincadeiras e reforçando parâmetros comportamentais e estéticos. Seu repertório de gestos, de expressões faciais, seu vestuário, seus clichês narrativos, seus poderes e sua personalidade são fontes de “beleza” ou “feiura”, e sugerem à criança os limites do que pode e do que não pode ser feito. As características do herói são referências potentes que influenciam escolhas em distintas áreas da convivência, sobretudo nos momentos em que as crianças brincam.

Podemos questionar e realizar mediações que promovam uma percepção mais crítica das crianças em relação a estes conteúdos. Mas é importante notar que, em alguns momentos, esta precisão comunicativa esculpida pela indústria do entretenimento, e que tanto sucesso faz, pode ser fonte de inspiração para as nossas práticas educativas. Como seria se pudéssemos criar ou adaptar narrativas capazes de gerar tanto interesse prolongado, agregando sentido e potencializando o ensino curricular? Nossas aulas seriam mais vibrantes? Nossos explicações e narrativas curriculares se reproduziriam nos recreios, inspirariam pega-pegas entre herois e vilões? Seriam mais continuados e significativos os nossos diálogos com os alunos se, vez ou outra, acolhêssemos as especificidades de seu mundo simbólico como parte de um processo coletivo de produção do conhecimento?

É preciso dar ouvidos à criança para que a Escola seja um espaço em que a infância seja vivida em sua plenitude. Como diz o sociólogo português Manuel Sarmento, não podemos fazer entrar pela porta da escola apenas o aluno. A criança tem de vir junto. Se recebemos no início do ano apenas o aluno, deixando a criança do lado de fora da Escola, ela dará um jeito de entrar pela janela. Aí é tarde. Perdemos o contato, o controle e as chances de se estabelecer um diálogo produtivo e sincero se esvaem. Neste caso, a “aluno” é a imagem idealizada que tanto desejamos. É a imagem daquele indivíduo concentrado, disposto a atender nossas solicitações e passar horas sendo orientado sem reclamar. O “aluno” é a imagem daquele que não nos incomodaria. Por outro lado, a “criança” não é uma imagem, mas sim o sujeito real, criativo, inquieto, que traz para dentro da escola as forças e influências sociais que apreendeu da vida. A “criança” incomoda, porque a “criança” deseja, e seu desejo nem sempre vai de encontro aos nossos interesses escolares. Por isso, com frequência, desprezamos a criança e enaltecemos o aluno.

Negar a criança em nome do aluno é perder de vista potencialidades humanas que só florescem quando os sujeitos estão de algum modo conectados aos seus centros de interesse, aos seus desejos. Se a Escola nega os saberes da criança, se não reconhece sua linguagem e desmerece a cultura infantil, ela fecha uma de suas mais significativas vias de acesso, que é a de interlocução cultural. Assim, a inevitável relação entre cultura escolar e culturas da infância, tão indispensável à produção do conhecimento escolar, fica fragilizada.

É neste sentido que nós, profissionais da Educação, podemos lançar mão de nossas motivações lúdicas, brincando com as crianças, compreendendo, respeitando e praticando seu repertório cultural. Afinal de contas, se as crianças passam horas reunidas em torno dos adultos, num esforço intenso para apreender a cultura que o currículo escolar disponibiliza, por que então, de vez em quando, os profissionais da escola não podem se reunir em torno delas na tentativa de tornarem-se mais íntimos dos conteúdos lúdicos que apenas ali, no interior de uma brincadeira, torna-se possível conhecer?

(Texto escrito por Nélio Spréa. Doutor em Educação pela Universidade Federal do Paraná. Palestrante, escritor e diretor da Parabolé Educação e Cultura)

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